CONTO: A fada e o bardo

Em um lugar que não era nenhum lugar conhecido, em um tempo que não era nenhum tempo determinado, em um espaço perdido entre dimensões, existia uma colônia de fadas, muito organizada, com todos seus membros interagindo com respeitosa harmonia entre si e com a majestosa floresta que os envolvia.
Uma floresta de sonhos e desejos, escondida em uma colina verdejante às margens do Rio Teifi, em uma curva próxima a um dos muitos poços que alimentam o rio, protegida dos olhares humanos e guardando a porta de entrada para o mundo Sidh e todas as suas camadas.
Nesta colônia, vivia Gwen, uma pequena fada sonhadora, de magníficos cabelos vermelhos e sorriso tímido, que não acreditava nas histórias contadas pelos mais antigos, que sempre avisavam da profundidade da maldade dos seres humanoides que caminhavam sobre a colina.
Gwen os observava e os achava tão divertidos, com suas travessuras, disputas infantis e eterna luta pela sua frágil vida.
De tanto os observar, Gwen começou a nutrir sentimentos variados por vários deles. Até que, um dia, um jovem moreno de belos e profundos olhos negros como a noite chamou sua atenção. Ele costumava caminhar displicente pelas colinas e sempre se esquecia de fazer alguma coisa importante. O que lhe rendeu o apelido merecido de cabeça de vento. Era assim que todos conheciam o jovem Draco.
Gwen tinha certeza de que, de alguma forma, Draco poderia sentir sua presença e quase poderia jurar pela Deusa que ele já teria tido um vislumbre de sua colônia e de seu rosto em alguns de seus sonhos.
Draco era um bardo que gostava de sentar-se à sombra de um frondoso carvalho e escrever suas canções ao som das murmurantes águas profundas do Teifi.
E a vida seguia assim seu curso, Gwen com suas tarefas de capturar glóbulos de vitalidade cor de magenta do sol e condensá-los em pequenas bolhas que seriam levadas pelas fadas nutridoras à floresta quando os humanoides dormiam ainda, nos primeiros raios de sol da manhã.
Draco, por sua vez, pouco dormia, com seus insones olhos a perscrutar a madrugada à procura de... fadas! Tinha certeza que as tinha vislumbrado ao nascer do sol. Só não poderia provar.
Tudo continuava a ser como deveria ser. O dia enfim chegou em que Gwen recebeu a autorização para seguir com as outras fadas em seu trabalho de alimentar as flores e árvores da floresta dos humanoides, do lado de fora da sua colina.
Gwen não poderia se conter de alegria. Já tinha planejado tudo! Iria escapar furtivamente para espiar a janela de Draco e tentar descobrir um pouco mais sobre a vida dos seres fascinantes e de vida tão breve.
Assim lá se foi Gwen, com tranças em seus longos cabelos e um brilho novo em seus pequenos olhos amendoados. Estava tão encantada com a possibilidade de ver mais de perto o objeto de sua acurada observação, que se esqueceu das bolhas nutridoras e seguiu direto para a janela de Draco. Queria vê-lo adormecido e achava que seria muito diferente de tudo o que conhecia desde então.
Draco abriu um olho, depois outro e, por fim, abriu os dois de uma só vez. Não, ele não tinha sonhado. Uma linda jovem de cabelos em trança e de um magnífico tom avermelhado o estava observando na janela de seu quarto.
Seus olhos se encontraram por um átimo de segundo e fez-se magia neste instante. Olhos de fada perdidos na profundidade dos olhos do bardo; olhos de bardo afogados na pureza dos olhos amêndoa da fada.
Neste átimo de segundo, o mundo perdeu o compasso, mudou o rumo e a separação ancestral que existia entre seus mundos ruiu por completo.
Draco quebrou o silêncio ao dizer: - Quem é você, menina?
Palavras que quebraram o encanto e fez com que Gwen se apavorasse e saísse correndo até desaparecer na penumbra dos últimos vestígios da noite no horizonte.
Gwen não se esqueceria deste encontro de olhares por muito tempo. Queria voltar, perguntar mais sobre a vida dos humanoides, queria, enfim, conhecer um pouquinho melhor aquele ser de olhos tão tristes.
Draco passou horas parado, sentado embaixo de seu carvalho favorito tentando entender o quê exatamente tinha acontecido e quem era aquela menina tão bonita, quanto estranhamente delicada.
Sem saber, ambos se procuraram sem poder se encontrar, pois a barreira da colina os separava. Gwen sabia que poderia rompê-la se quisesse, mas, todos os avisos sobre a perfídia e crueldade dos humanoides pesavam sobre suas têmporas e a faziam recuar tão logo chegava à margem da barreira. Mas, Draco deixou uma lágrima rolar e isso a fez decidir-se e ela saiu.
Os olhos de Draco e Gwen se encontraram e perceberam que a magia que pensaram existir antes, era ainda mais forte do que imaginaram. Algo maior do que as diferenças, preconceitos, medos, incertezas começava a nascer e se formar entre eles. Um reconhecimento estranho, que emaranhava passado, presente e futuro em um só facho de luz difusa e quente, que aconchegava e brincava com os lábios de ambos, fazendo-os sorrir.
Durante muitas e muitas manhãs ensolaradas, Gwen e Draco encontraram-se furtivamente sob a doce proteção do carvalho ancião que margeava a floresta e a colina das fadas. Um guardião entre dois mundos. Um cúmplice sereno e silencioso para dois apaixonados improváveis. Conversavam sobre tudo e sobre nada, sobre seus mundos tão diferentes entre si, sobre sentimentos, poesia, música...
Até o dia em que Llyanon, a rainha das fadas que por acaso era mãe de Gwen, aparecer no exato momento em que ambos trocam um beijo sob a proteção do velho carvalho. A rainha olha soberana para sua filha que recua e esconde seu rosto entre as mãos, com uma estranha sensação de vergonha e perda fazendo seu coração pulsar forte e acelerado. Sim, a despeito do que dizem os humanoides, fadas também têm coração.
A rainha leva Gwen embora para a colina e, lá, conversa longamente com sua filha. Explica que humanoides não são confiáveis, que os bons sentimentos os abandonaram há tempos, que eles não conhecem o valor e o significado de lealdade, amizade, fidelidade e, principalmente, amor.
Relutante, Gwen enfrenta sua mãe e diz que Draco não é assim, que ele sabe sentir e demonstrar todos estes sentimentos superiores e que nunca a trairia. Que ela estava disposta a abandonar a colina das fadas para viver com ele.
Llyanon, suspira e explica a Gwen que se e somente se o seu humanoide Draco passasse em uma prova especial de lealdade, fraternidade e fidelidade eles poderiam ficar juntos. Contudo, era um sortilégio perigoso, já que, uma vez aceitando o desafio, ela, Gwen, não poderia contar a ele que era um teste e que, se ele falhasse, ela não poderia voltar e perderia sua vida de fada, diluindo nas águas poderosas do Teifi.
Certa de seus sentimentos, bem como dos sentimentos de seu amado, Gwen aceita sem pestanejar e pede que sua mãe dê início ao teste sem demora, pois quer provar logo a ela e a todos que certos sentimentos ainda persistem e pulsam nos corações dos habitantes do outro lado da barreira.
Llyanon concorda e, sem que a filha perceba, deixa algumas lágrimas de prata escorrerem por seu rosto imaculadamente perfeito. Ela sabia instintivamente que era uma despedida.
Feito o trato, Llyanon libera da colina uma criatura também de forma humanoide, mas, de longos cabelos negros, sedutora, sensual, com todos os atributos que tanto agradam aos humanos e tanto os enganam entre suas palavras macias e ilusórias. Seu nome era Morgh, meio fada, meio animal, uma mistura dotada de mais instintos primitivos do que qualquer um dos dois reinos estavam acostumados a enfrentar.
Morgh se aproxima calma, serena de Draco. Insinua-se para ele, envolve-o em sua teia invisível de lisonja e encanto.
Draco não a vê como um perigo. É mais uma amiga que ganhou. Uma amiga que o presenteia com frutos, grãos, músicas sedutoras. Alguém que gosta de conversar com ele. Tanto que o envolve de tal forma, que ele não escuta os chamados insistentes de Gwen. Ele não percebe o olhar de triunfo de Morgh, tampouco as lágrimas amargas de Gwen que o chama em vão, enquanto ele canta displicente a música sedutora de Morgh.
Gwen tenta chamar seu amado, fazer com que ele perceba que ela tem as mãos arranhadas, os cabelos perdendo seu viço e apela para que ele a olhe. Porém, Draco está tão envolvido na frivolidade vazia de Morgh, em suas lisonjas e agrados fáceis, que não percebe que Gwen se esvai, escorregando entre as folhas e perdendo pouco a pouco sua vida.
Quando finalmente, Draco a olha, semimorta, sem cabelos, totalmente arranhada, não compreende o que aconteceu. Não consegue ver o quanto sua ligação com Morgh, que achava tão sadia e sem maldade pôde fazer isso com ela.
Em seu último suspiro, quase sendo dissolvida nas águas do Rio Teifi, Gwen se despede de seu amado e diz, num sussurro, “Nem sempre o que pensamos ser inocente e puro realmente o é. Achei que você conhecia o que era lealdade e amor. Lealdade e fidelidade não são determinadas só por traição, meu amado, são demonstradas por pequenos gestos e por estar ao lado de quem se ama, mesmo que não pareça tão necessário assim estar lá.”
E, assim, dissolve-se nas águas. Dizem que Draco continuou a vida inteira sem entender o que fez, que por sua causa a vida de sua amada se dissolveu. Dizem que virou bardo em um rico salão real. Dizem que foi feliz. Dizem que as águas do Rio Teifi sempre trazem um lamento em luas cheias e que este lamento é uma mistura dos cânticos de Gwen dissolvida nas águas e de suas irmãs fadas sob a verdejante colina que ainda está lá, junto ao carvalho ancião que a tudo assistiu e suspira em noites de inverno por saudades de Gwen, de Draco e de seus inocentes beijos escondidos entre seus galhos...

Lúcia Helena Ornellas